sábado, 24 de maio de 2014

# Pensando com Kierkegaard sobre o desespero humano #


O DESESPERO HUMANO 
Uma reflexão sobre os textos de
Sören Kierkegaard




    É fato que durante o presente século, tivemos a oportunidade de contemplar um crescimento incomensurável da tecnologia ao lado de grandes conflitos e crises existenciais que apontam para o desespero humano diante de tantas complexidades que envolvem a humanidade. Nossa sociedade está emocionalmente doente.
  Temos  um século marcado pela violência e degradação dos valores humanos. Temos muitos conflitos mundiais, várias guerras isoladas, milhares de agressões e atitudes equivocadas de líderes políticos, que nos causam profunda perplexidade. 
   Kierkegaard lá pelos anos 1849, escreve sobre o desespero humano. Ele é considerado o pai do existencialismo pois, segundo ele, mais importante do que a busca por uma verdade única que explique todo o universo, é a busca de verdades que sirvam para cada pessoa individualmente e se adaptem às escolhas que cada um fez para sua vida e a forma como essas pessoas  estruturaram o seu "eu". Consequentemente, a pedra fundamental de sua obra é a existência de cada um, naquilo que tem de singularidade.
   O existencialismo, que com ele se inicia, é um voltar-se para a concretude do indivíduo, para a sua singularidade e particularidade, na linguagem de Heidegger para o "ser-no-mundo". Ele (Heidegger), apresenta, para nós, o ser humano como aquele que se encontra em situação,  num círculo de afetos e interesses no qual o homem se acha sempre imerso, porém, nunca preso a ele, pois ao contrário, o ser humano está  sempre aberto para tornar-se algo novo, sempre está para além da situação na qual se encontra.
   Somos um rascunho, projeto ou esboço, um ser inacabado em processo de individuação.
   Diante das observações no nosso cotidiano os meios de comunicação nos relatam que estamos em um  momento de "desespero mundial", um processo de transição, difícil para todo planeta. A questão que devemos pensar é : Quais são as situações que nos  provocam  desespero? Será  que a influência do meio externo bloqueia  nossa possibilidade  de visualizarmos nossa felicidade?  Será que o excesso de  notícias que exploram as  imagens dramáticas , tornando-as banais , bizarras, estão nos robotizando? Por que temos tanta dificuldade em transcender o meio externo ? Por que fugimos de nossa transcendência espiritual ?
   Por certo, acharemos várias justificativas para estas perguntas. Mas, após a leitura do texto de Kierkegaard, percebemos, que o "DESESPERAR" é muito mais do que um fenômeno social, é também uma questão emocional, que nos leva ao fracasso ou ao triunfo. Todavia, surge a indagação: " Triunfo ou fracasso sobre o que ou sobre quem?" Sobre as guerras? Sobre o desemprego? Sobre a fome? Sobre as dificuldades financeiras? Sobre a violência? Sobre o amor ? O fracasso e o triunfo são muito relativos.
   Contudo, uma citação dos sábios orientais  serve como reflexão, para que possamos avaliar sobre como  triunfar no que diz respeito ao "DESESPERO HUMANO", :
"Um homem no campo de batalha conquista um exército de mil homens. Um outro conquista a si mesmo - Este é o maior".
 (Dhammapada, S. "Insight Meditation".Advancement of Buddhism,) 
 É justamente desse aspecto que Kierkegaard fala sobre o desespero humano.
    Para ele este era um processo de conquista do próprio eu, uma oportunidade de sermos nós mesmos, uma espécie de trampolim que auxilia o indivíduo a chegar a uma existência mais plena. Pois, como disse Kierkegaard: "Todo desespero é fundamentalmente um desespero de sermos nós mesmos". Então surge a indagação:  "O que é o desespero na visão de Kierkegaard?" No seu texto ele ressalta alguns tipos de desespero, porém, comentamos apenas sobre dois deles, a saber:
1- O desespero pelo desejo de não ser um eu próprio - denominado de desespero-fraqueza.
2- O desespero pelo desejo de ser um eu próprio - denominado de desespero-desafio; Para Kierkegaard o homem em desespero tem o costume de se considerar uma vítima das circunstâncias, porque o desespero revela a miséria e a grandeza do homem, pois é a oportunidade que ele possui de chegar a ser ele mesmo, chegar a ser um eu próprio.
 O desespero é algo universal para Kierkegaard. Todos os homens vivenciam o desespero, mesmo não tendo consciência plena dessa situação.
   A pessoa mais complacente consigo mesma, é aquela que não se dá conta das suas dificuldades. Quando chega a "CATÁSTROFE" ou "A CRISE", ela passa a se ver num estado que é próprio do ser humano, ou seja, perceber-se em desespero, desamparado e abandonado à sua própria gerência.
  Para Kierkegaard esse momento é salutar , pois a crise que se mostra com o desespero pode levar o indivíduo à "cura", mas pode ser seriamente perigosa se o indivíduo não quiser dar conta de si próprio, ou seja, tornar-se ele mesmo. Neste momento o filósofo dinamarquês mostra um sentido mais próximo do original da palavra crise (krisiV) . Que é derivada do verbo grego krinô (krinw) que significa separar, julgar, decidir, considerar, avaliar, selecionar e escolher. 
   O desespero, enquanto momento de "crise" é uma hora de escolha. Sendo ela, expressa em atos. A "cura" é a princípio, transparecer, o dar-se conta do seu próprio desespero, sendo a "doença" a negação ou a intenção de não ter consciência deste estado.
  O homem que enfrenta com coragem, primeiramente, o ato de ver o seu desespero não está longe da "cura". Dizia Kierkegaard: "Quem desespera não pode morrer". Porque, quem se desespera acerca si próprio, quem desesperadamente deseja libertar-se de si próprio, ao invés de extinguir-se, se refaz, torna-se um novo "eu". No desespero-fraqueza, aquele que se fundamenta na intenção declarada do indivíduo de não ser ele mesmo, o que se apresenta é uma profunda negação.
     Nietzsche no seu "Assim Falou Zaratustra" (1891), chama essa esfera de vida de "vivência do camelo", onde a conduta do homem, por não se conhecer a si mesmo é ditada pelo medo, pelo tu-deves e pela disposição imensa de levar pesadíssimas cargas, vejamos o que o filósofo disse: "Todo esse pesadíssimo espírito de carga toma sobre si: igual ao camelo, que carregado corre para o deserto, assim ele corre para o seu deserto".
   Quantas pessoas conhecemos que vivem assim? Carregando cargas profundas, assumindo gratuitamente os problemas dos outros e residindo num verdadeiro deserto, onde só se encontra pedra, pó e o sol escaldante. De forma imensamente dramática, o próprio Kierkegaard coloca para si o desejo de abraçar DESESPERO-DESAFIO, que é a aceitação da destruição de si, isto é, a morte do "EU ESCRAVO", para um pular ou arriscar a ser, um eu de sua própria invenção. O grande desafio do indivíduo é superar a finitude e a necessidade de ser um eu próprio, construído através das suas forças. E isto, só é alcançado, mediante o "SALTO DA FÉ", que é experimentado mediante a liberdade, a sua própria decisão, sem qualquer influência do outro. É a verdadeira afirmação da sua própria vontade. É a troca do "Tu-deves" irresponsável, que vimos anteriormente, pelo "EU QUERO" determinante. É o experimentar  que Kierkegaard chama de "Angústia de Abraão". É neste instante que diante do eu, o campo das suas possibilidades reais crescem e, o indivíduo, sem medo, parte para a procura daquilo que ele quer ser.
   Isso é possível, existem pessoas que não assumem o "esperado" delas, mas olhando para si, fazem algo novo, desmistificando todas as expectativas dos outros.
   Helen Keller, que nasceu cega e surda (1880-1968), era "esperado" que ela fosse mais uma criança deficiente no mundo, mais um ser humano com problemas de saúde na eterna dependência do outro, mas ela " superou o esperado". Através da ajuda de sua professora Ana Sullivan, desafiou o destino que parecia lhe estar reservado e, aprendeu a fazer tudo como as pessoas ditas normais faziam. Venceu a sua crise, isto é, escolheu não se deixar permanecer presa à cegueira, surdez ou qualquer deficiência, antes superar tudo isso.Tornou-se uma célebre escritora, filósofa e conferencista, uma personagem famosa pelo extenso trabalho que desenvolveu em favor das pessoas portadoras de deficiência. O que dizer também do compositor alemão Ludwig Van Beethowen, que depois de ter perdido a sua audição, conseguiu escrever uma sinfonia inteira, usando não os sons mais as vibrações destes que faziam no solo de sua casa.E quantos outros são referências para nós de superação.
    O que podemos pensar com isso? Que qualquer ser humano, seja ele quem for, pode superar e ultrapassar as situações mais difíceis que se apresentam na sua vida, pois conforme o filósofo alemão Martin Heidegger disse: "O homem é um ser que está para além da sua própria situação". Por que podemos ter tanta convicção nesta afirmação?
   Porque, percebemos o ser humano não como uma coisa ou um simples objeto, que vive sendo determinado pelas circunstâncias da vida ou pelo outro. Mas, que tem a possibilidade de olhar-se para si mesmo, ousando ser ele próprio, transformar e mudar ocorrências e eventos de sua vida.
     Irwin Yalon nos fala que  não somos livres das influências biológicas, sociológicas, familiares ou políticas, no entanto, ele mesmo afirma que nós somos completamente livres para lidar com todas estas coisas. Isto ratificando as palavras de Sartre, a saber: "Não importa o que fizeram de mim, importa o que eu faço daquilo que fizeram de mim". 
 Nós repetimos o mesmo comportamento a vida inteira porque foi a maneira como aprendemos e treinamos, não questionamos nossas crenças. Acabamos nos tornando escravos da rotina e, quando somos solicitados a mudar, argumentamos: Sou assim desde criança, é o meu jeito de ser e não vou mudar. A grande verdade é que  somos  a pessoa que escolhemos ser. Todos os dias podemos decidir se continuamos do jeito que somos ou mudamos.
       É necessário que tenhamos a absoluta intenção em querermos ser  nós mesmos. E, como nós vimos, o indivíduo que mantém a postura do desespero-fraqueza, em não se permitindo ver-se, sustenta a ilusão que o modelo do outro sempre é melhor que o seu. Esta escolha desenvolve uma profunda falta de amor próprio e um desconhecimento das nossas reais possibilidades. Nos tornamos um prisioneiro dos modelos, das formas, dos "deverias", enfim, um prisioneiro de nós mesmos, porque a chave de nossa cela está conosco o tempo todo, só que  por muitas vezes nós nos  negamos a usá-la.
    O desespero-desafio é uma postura muito diferente da primeira. Nela o indivíduo toma consciência de que o melhor que ele pode fazer por si, é ser ele próprio. Neste aspecto, o indivíduo não se recusa a aceitar o seu eu, porém, procura antes de mais nada conhecê-lo, a fim de que possa aos poucos construir um eu de sua própria invenção. A consciência de que ele está sendo vai aumentando, ampliando a sua visão de si mesmo e assim proporciona a percepção da sua singularidade.
    A cada dia este indivíduo se sente desafiado em "tirar o esperado". Em evidenciar que ele é um ser único e singular. Que é ele mesmo, quem deve determinar o melhor para si. O que significa dizer que este melhor para si, é melhor só para ele, o que gera um egocentrismo.Este estado de situação que vivemos  que chamamos de globalização é uma espécie de anonimato no qual procura-se diluir as diferenças e singularidades dos povos, dentro de um uniformismo econômico, cultural e social. Dentro dessa visão o humano é apenas mais um mero detalhe, um número.Tão importante quanto ser é compartilhar, ser solidário.
   Kierkegaard, viveu em uma época, com efeitos não tão diferentes dos nossos atuais, onde a massificação, o fazer tudo igual, o desvalor do indivíduo era fomentado e fortalecido. Ele se rebelou contra esta ordem, onde as pessoas tinham que seguir as convenções gerais, em detrimento da sua própria individualidade. Kierkegaard sempre disse que o que importa é como o indivíduo, na sua particularidade, na sua concretude e na sua unicidade, faz com a sua existência. 
    Existência  para Kierkegaard não era o mero ato de respirar, de comer ou se vestir, mas "um ato de escolher em ir na direção de ser". A direção daquilo que o indivíduo elegeu como sendo o seu objetivo, o seu projeto. 


   Existir é ir em direção às escolhas individuais. É sair da prisão da mesmice, da igualdade e da uniformidade que tanto sofrimento causa e, partir em direção à nossa individuação. É um ato de coragem, um parto, pois é preciso quebrar toda uma "história" pré-articulada e construir a sua singularidade. Por certo, quando fazemos escolhas que contemplem o nosso ser no mundo  em sua concretude e espiritualidade  minimizamos nosso "desespero humano."

Jane

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